No sábado, 22 de fevereiro, fui convidado a participar do início da manifestação que partiu da Praça da República, em São Paulo. Se não fosse a violência policial, seguida por episódios de depredação, talvez a população em geral soubesse que o objetivo da caminhada era reivindicar o direito à educação, antes de expressar contrariedade com a realização da Copa do Mundo.

Por solicitação de alguns coletivos que promoviam o evento, estava lá para ministrar uma espécie de uma Aula Pública sobre as políticas de educação no Brasil. A atividade aconteceria em um lugar simbólico, em frente ao antigo colégio Caetano de Campos, atual sede da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo.

Fui demandado a apresentar as polêmicas em torno do novo PNE (Plano Nacional de Educação), que tramita há mais de 3 anos e 2 meses no Congresso Nacional. Nessa atividade, iria defender a opção pelo texto da Câmara dos Deputados, que conta com a adesão da sociedade civil, contra a versão de PNE elaborada pelo Senado Federal, defendida por setores do Palácio do Planalto e do Ministério da Educação.

Fiquei curioso sobre o processo de tomada de decisão relativo às pautas dos atos. Diferente do que muitos pensam ou julgam, fui informado de que todas as manifestações são precedidas de 6 a 7 assembleias. Nelas participam de 15 a 20 coletivos.

Infelizmente, a tensão promovida pela maciça presença da Polícia Militar, que desde o começo tentava asfixiar os manifestantes por meio de duas extensas colunas, impossibilitou a Aula Pública conforme o planejado. Ainda assim, decidi acompanhar o início do percurso.

A primeira faixa da manifestação resumia a pauta consensual do ato. Reivindicava “10% do PIB já + 100% de creche + cotas reais”. Pretendia problematizá-la em minha fala, mas as duas colunas de policiais já oprimiam os manifestantes. Com o risco de conflito já no início do ato, alguns coletivos decidiram partir, seguidos pelos demais.

No tempo em que caminhei, foram distribuídos diversos folhetos. Basicamente reivindicavam direitos sociais e quase todos que recebi eram concluídos pelas frases “se não tiver educação, não vai ter Copa” e “mais educação, menos bola”. Em linhas gerais, os motes eram problematizados pela exigência de investimento equivalente a 10% do PIB em educação pública (proposta que consta do texto da Câmara de PNE), o direito à creche, o aprofundamento da política de cotas e a valorização dos professores – único tema que faltou na primeira faixa da manifestação.
Pautas da manifestação

Além dela, outra dedicada à questão educacional se destacava. Pedia a estatização de grandes universidades privadas paulistas, provavelmente mobilizada pelos casos de descredenciamento da Gama Filho e da UniverCidade no Rio de Janeiro. Ainda na concentração, questionei um manifestante sobre a proposta. Sorrindo, ele respondeu demonstrando reflexão sobre o tema: “Eu até concordo com a ideia, mas não é consensual. Estatizar é medida de longo prazo, depende de uma transição, de estudo”.

Fiquei curioso sobre o processo de tomada de decisão relativo às pautas dos atos. Diferente do que muitos pensam ou julgam, fui informado de que todas as manifestações são precedidas de 6 a 7 assembleias. Nelas participam de 15 a 20 coletivos. Segundo relatos, as discussões são baseadas em argumentos de ordem técnica e estratégica. Conversei com calma com F.M., manifestante que receia ser identificado após ser “mais uma vez agredido pela polícia”. Para ele, “o antes é melhor do que a manifestação em si. As assembleias são os melhores momentos, pois geram debates, aprendizados e reflexões”.

Fruto desse processo de discussão, os coletivos elencaram 6 pilares de indignação. Os 4 primeiros são relativos à exigência de direitos: educação, transporte, saúde e moradia. O quinto é o combate à violência policial. E apenas o sexto e último tem ligação direta com a Copa do Mundo: é o FIFA GO HOME.
Não somos contra Copa

F.M. justifica: “Não somos contra a Copa, apenas queremos nossos direitos, mas a Fifa é a nossa OMC [Organização Mundial do Comércio]”. Assim, compara as manifestações brasileiras com os eventos de 30 de novembro de 1999 em Seattle, quando ativistas questionaram a reunião da Organização Mundial do Comércio naquela cidade estadunidense.

Perguntei para F.M. o que motivou a escolha da pauta da educação. “Nas assembleias muitos de nós dizem que têm vontade de estudar. Muitos ali são autodidatas, mas todos querem educação pública de qualidade da creche até a pós-graduação, essa é a linha”, afirmou.

Ao desconhecer todo o processo de elaboração das pautas e de organização dos eventos, inclusive devido aos enfoques dados por alguns releases distribuídos aos veículos de comunicação, a imprensa não se equivoca completamente ao categorizar a manifestação como um evento que questiona realização da Copa do Mundo no Brasil. Muitas palavras de ordem criticam a Fifa, as remoções de famílias, os gastos com estádios e as obras de infraestrutura inacabadas. Contudo, isso tudo é parte do ocorrido. A todo momentos eram reivindicados direitos sociais e era condenada a violência policial.

Nesse contexto, praticamente todos os governantes envolvidos com o torneio foram criticados: prefeitos das cidades-sede, governadores de Estados onde se realizarão os jogos – especialmente Geraldo Alckmin (SP) e Sérgio Cabral (RJ) –, além da presidenta Dilma Rousseff.

Estive na África do Sul durante a Copa do Mundo de 2010. Em qualquer país em desenvolvimento, os gastos com a promoção de grandes eventos esportivos geram revolta. E o descontentamento é alimentado todos os dias diante das exigências descabidas da Fifa.

Mesmo não tendo se equivocado completamente, pois a Copa foi e será tema das manifestações, a imprensa deveria ter noticiado o 22f, como tem sido denominada a manifestação de 22 de fevereiro, com maior profundidade. Foi um ato que exigiu mais e melhor educação.

As próximas atividades debaterão transporte público de qualidade, saúde e moradia, mas sem se esquecer das políticas públicas educacionais como pauta estrutural. Em que pese o esforço das mídias alternativas em noticiar de modo mais denso e completo os atos, a maior parcela da sociedade brasileira informada pela grande imprensa permanecerá refém da inócua oposição entre o #vaitercopa e o #nãovaitercopa, tão em voga nas redes sociais.

A equação é simples. Diante dos compromissos assumidos pelos governos para a realização da Copa do Mundo no Brasil, essa simplificação binária acaba estimulando ainda mais a máquina de repressão às manifestações, por meio da violência policial. E como resultado, avança a inaceitável criminalização dos movimentos sociais.

Não se trata, portanto, de concordar ou discordar das manifestações – e para isso, antes é preciso compreendê-las e contextualizá-las. Trata-se de defender dois pilares fundamentais da democracia: o direito à participação e o direito à livre expressão. E é uma pena que a educação não tenha sido retratada como pauta fundamental do 22f.

Por Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação desde junho de 2006. É bacharel em Ciências Sociais e Mestre em Ciências Política pela Faculdade de Filosfoia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). É membro titular do Fórum Nacional de Educação.

SECOM/CPP