No dia 11 de fevereiro foi retomada a tramitação do novo Plano Nacional de Educação (PNE) na Câmara dos Deputados, após um difícil período de análise da matéria no Senado Federal.

Embora a Câmara estivesse vazia, o Plenário 11 do Anexo 2 estava cheio. Na reunião da Comissão Especial dedicada ao tema estavam presentes: deputados e deputadas, assessores e consultores legislativos, ativistas da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, representantes de entidades, de gestores municipais e estaduais, professores, líderes sindicais, jornalistas, evangélicos, servidores do MEC (Ministério da Educação), entre outros. Poucas matérias recebem tanta atenção.

Nessa etapa de tramitação os deputados têm três opções: optar pela sua versão de PNE, aprovada em junho de 2012; escolher a versão do Senado Federal, finalizada em dezembro de 2013; ou eleger trechos de cada uma, compondo um novo texto, desde que nele não conste qualquer dispositivo novo que altere o mérito do que foi aprovado anteriormente pelo Senado ou pela Câmara.

Embora pareça ser um simples exercício de escolha, essa etapa exigirá sensibilidade e forte capacidade de negociação por parte dos parlamentares. O PNE tramita no Congresso Nacional desde dezembro de 2010 e sua construção não tem sido fácil.
Colaboração

Segundo o Art. 214 da Constituição Federal, o objetivo do PNE é “articular o Sistema Nacional de Educação em regime de colaboração”. Obrigatoriamente, ele deve “definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades”. Para dar conta dessa tarefa, a Carta Magna determina que é necessário empreender “ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas”. E é precisamente nesse trecho final que reside essencialmente o problema.

Boa parte da demora na aprovação do PNE pode ser explicada precisamente pela dificuldade dos governos federal, distrital, estaduais e municipais de trabalharem em conjunto, articulando ações entre si e cumprindo com suas responsabilidades constitucionais.
Papel do governo federal está claro na Constituição

Como a colaboração é desejável, mas nem sempre é espontânea, a Constituição Federal no Art. 211 vai asseverar que os governos federal – o que mais arrecada –, distrital, estaduais e municipais “organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino”.

Ou seja, devem trabalhar juntos.

Logo em seguida, no primeiro parágrafo deste mesmo artigo, determina que a União, além de organizar o sistema federal de ensino e financiar as instituições públicas sob sua responsabilidade, “exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios”.

Mais para frente é determinado que estes entes subnacionais são responsáveis, prioritária e respectivamente, pelo ensino médio (Estados), ensino fundamental (ambos) e a educação infantil (municípios).

No Brasil, a trajetória das políticas sociais em geral, e a da educação em específico, pode ser narrada como uma história de descontinuidades e dissonâncias. Embora alguns esforços recentes em contrário, cada governo tem a sua política, fala a sua língua e tenta acertar um alvo específico, sempre querendo deixar a sua marca.

Nesse jogo quase exclusivamente dedicado à ambição eleitoral, quem sai perdendo é o cidadão. Por exemplo, para um adolescente que está nos anos finais do ensino fundamental, pouco importa se sua escola é federal, estadual ou municipal, ele tem o direito de estudar em uma boa escola.
Custo mínimo, com qualidade, por aluno

Em relação à proposta aprovada na Câmara dos Deputados, um dos principais retrocessos do texto do Senado Federal de PNE foi precisamente o de desobrigar a União de colaborar com os entes subnacionais no alcance dos valores do CAQi (Custo Aluno-Qualidade Inicial).

O CAQi é um índice que reúne os custos da educação pública por aluno ao ano, considerando salário inicial condigno, política de carreira e formação continuada aos profissionais da educação, número adequado de alunos por turma, além de insumos infraestruturais como: brinquedotecas, bibliotecas, quadra poliesportiva coberta, laboratórios de informática e laboratórios de ciências, etc.

Criado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o mecanismo do CAQi pretende proporcionar equidade no acesso à educação e, para isso, materializa justamente o padrão mínimo de qualidade exigido pelo parágrafo primeiro do Art. 211 da Constituição. Ou seja, oferece uma solução prática para colaboração da União com os entes subnacionais ao determinar que nenhum cidadão pode estudar em uma escola pública sem aqueles insumos listados.

Sendo um mecanismo justo, por que ele foi tirado do PNE no Senado Federal?

Primeiro porque as escolas brasileiras estão muito abaixo do padrão mínimo de qualidade. Uma pesquisa aponta que menos de 1% das escolas brasileiras têm infraestrutura mínima, segundo os critérios do CAQi (Custo Aluno-Qualidade Inicial). Segundo porque, o governo federal deveria repassar a Estados e municípios cerca de R$ 37 bilhões de reais por ano apenas para as matrículas atuais conforme estudo da Associação Nacional de Pesquisadores em Financiamento da Educação (Fineduca). Como o PNE exigirá a expansão de matrículas, esse valor subirá — e muito. E isso explica parte significativa da necessidade de investimento de um patamar equivalente a 10% do PIB para a educação pública. 
Divergências entre Câmara e Senado

Além do CAQi, os textos da Câmara e do Senado divergem em outros temas importantes. Pelo Senado, o Estado brasileiro, e principalmente a União, fica desresponsabilizado de criar matrículas públicas no ensino técnico de nível médio e na educação superior, curiosamente uma das marcas do ex-presidente Lula, patrocinador político da presidenta Dilma Rousseff.

A destinação de investimento público exclusivamente em educação pública também foi extraída do texto.

O PNE do Senado também traz outras mudanças negativas. E o aspecto mais dramático é que a versão aprovada pelos senadores em dezembro do ano passado foi construída por meio de forte interlocução deles com o MEC.

Nesse cenário, em que pese o fato de que na primeira reunião dedicada ao PNE todos os deputados tenham discursado em favor do texto da Câmara dos Deputados, dificilmente a matéria será resolvida com celeridade em sua etapa terminativa de tramitação.

Dificilmente o Governo Federal abrirá mão do texto do Senado Federal, pois ele é mais omisso quanto às suas responsabilidades. E é impossível que a sociedade civil aceite um PNE que desobriga o Poder Público de expandir matrículas com padrão de qualidade, tanto na educação básica, quanto na educação superior. O ano de 2014 reserva fortes emoções. E será lamentável, mas não uma surpresa, se ele se encerrar sem o Brasil ter um bom PNE aprovado.

Por Daniel Cara,Coordenador Geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação desde junho de 2006. É bacharel em Ciências Sociais e mestre em Ciência Política pela ‘Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas’ da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). É membro titular do Fórum Nacional de Educação.

SECOM/CPP