Plínio Montagner
Essa regrinha antiga ainda prevalece: a primeira impressão é a que vale. Quando é ruim, melhor não insistir; se for boa, vai-se em frente. Por isso, pode-se dizer que são inesquecíveis nossos primeiros dias de trabalho em nossa vida. Eu queria ser professor. Bem… Eu não, minha mãe. Por vontade própria eu queria ser maquinista. Meu pai era ferroviário e por isso viajávamos muito de trem, tanto que até hoje sinto uma fixação por trens: filmes de trens, romances de trens, museus, exposições, decoração e por viagens de trens que desejo realizar.
Meu primeiro dia numa sala de aula aconteceu num dia de março de 1959. Foi uma decepção. É fácil imaginar o nervosismo e a expectativa de um professor quando entra numa sala de aula sem conhecer o lugar, os alunos e as pessoas. Isto acontece a todos nós, e cada um tem sua história. Para mim foi assustador porque a inexperiência faz um imprevisto à toa se potencializar. Numa sala de aula não dá para improvisar nem fingir nem fugir. Ou a gente sabe, ou não sabe.
Tudo começou quando fui escalado para assumir o cargo de professor substituto numa Escola Rural. Só um candidato: eu. Não era para desconfiar? A fazenda tinha um nome bonito: Cascata – talvez para amenizar as dificuldades ou para enganar quem pensasse dar aulas lá. É bom lembrar que os dicionários apontam sinônimos dessa palavra: mentira, lorota, vigarice, bazófia, queda d’água… e tranquilidade.
As dificuldades e as surpresas foram tantas que, na verdade, a ninguém deveriam surpreender, considerando o pouco caso dos governos (e dos proprietários da fazenda) à educação. O que aconteceu naquele dia era para desanimar o mais otimista dos mestres de primeira viagem. Contudo, a vontade e o ímpeto da juventude incentivaram-me a não desistir. Afinal, alguém tinha de dar aulas naquele lugar. Eu não sabia, mas não havia linha de ônibus para a escola, e a fazenda não providenciava transporte. Foi na véspera da estreia que fiquei sabendo dessa nova.
Bem cedinho, um frio cortante, eu esperava na estrada uma carona para a fazenda. Um caminhão de boias-frias parou e me deram espaço na carroceria, ao lado dos cortadores de cana. Agachado no centro da carroceria, a cada buraco, um solavanco e um salto – eu e minha bolsa subíamos e descíamos como sapos pulando no brejo. Alguns quilômetros de percurso o caminhão parou diante de uma placa: Fazenda Cascata. Sinalizaram para eu descer. Cheio de disposição tomei a pé o caminho da fazenda. Era uma descida íngreme, estrada estreita, pedras soltas, própria para jipes, tratores e mulas. Meu corpo dolorido pelos solavancos do caminhão, empoeirado e sem rumo, igual a cachorro que cai de caminhão de mudança, consegui chegar à fazenda. Uma casa enorme, cor-de-rosa.
Ninguém me esperava. Apareceu um menino com um cão:
– É o senhor que veio dar aula?
Diria que o garoto lembrava o Chico Bento, do Maurício de Souza. A “escola” era uma casa que mais parecia um estábulo: telhado precisando de reparos, vacas deitadas ao redor, e muita sujeira. Precisava consertar tudo: telhas, portas, vidros, janelas, lousa, carteiras… Acho que não queriam professor por lá. Senti-me um intruso. Outras crianças foram se aproximando.
– O senhor joga bola?
Começamos a pôr a casa em ordem. Nesse dia, é claro, não dei aula, nem durante a semana. Pintamos uma parede de verde, comprei material, giz, apagador, e devagar fomos consertando e arrumando. Na volta para minha casa, lá pelas cinco da tarde, cansado, com fome, nem jipe, nem carroça, charrete ou trator para a cidade. Resignado, enfrentei o morro. Sol encoberto. Subir era pior, mas restava-me a resignação e entusiasmo. De repente, um pingo grosso, pesado, bateu em meus óculos, depois outro, outro … e veio a chuva forte, pesada. O abrigo da goiabeira não deu conta. Fiquei encharcado, minha bolsa de couro, livro de chamada, estojo, e no pulso meu preciosíssimo relógio ômega, que ainda o tenho, aguentou comigo a intempérie. Num intervalo da chuva reiniciei a subida. Agora, quase impossível. Escorregava para um lado, para outro; o barro grudado na bota dificultavam os passos.
O dia seguinte, e os outros, também foram ruins, mas conseguimos completar o primeiro semestre, eu e os vinte e cinco alunos. Com saudades e numa réstia de melancolia deixamos nossa escolinha com um nome: Escola Mista da Fazenda Cascata. No segundo semestre, finalmente, outra data importante: fui nomeado como professor primário efetivo numa cidadezinha há 600 quilômetros de Azarei de novo! O Grupo Escolar do Bairro de São Bento – de santo tinha o nome. Ficava a dez quilômetros da cidade. Se a estrada não tinha morro, barro, pedra nem terra vermelha, tinha areia, muita areia. Ia com minha bicicleta Monark, de pneu balão, nova. Mas a areia… mais a empurrava do que me servia.
Professor primário é mesmo teimoso, senão insensato. Continuei a dar aulas por mais trinta anos. Conheci outros lugares e cidades – Adamantina, Dracena, Vera Cruz, São Paulo, Leme, Rio Claro, Araras, Pirassununga, até me aposentar numa escola da cidade de Piracicaba.
Esta narrativa é um exemplo do sofrimento dos professores de escolas públicas e do desrespeito dos governos à educação, aos mestres e da indiferença dos atuais alunos, que se acham imperadores sem saberem nada da vida. Isto já acontecia há 60 anos. Por que não fui conduzir trens, em vez de alunos?
Plínio é professor aposentado e associado do Centro do Professorado Paulista