Considerado fundamental por especialistas, conteúdo pode ajudar a reduzir número de adolescentes grávidas e de ISTs, além de combater homofobia
Algo na aula de Ciências. Mais um pouco uns anos depois, em Biologia. O currículo que crianças e adolescentes brasileiros têm nas escolas passa longe da educação sexual, disciplina considerada essencial à promoção dos direitos humanos pela Organização das Nações Unidas (ONU). Homologada entre 2017 e 2018, a própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que norteia o ensino no País, é vista como um retrocesso em comparação ao Plano Curricular Nacional, de 1998.
No documento voltado à educação infantil e ao ensino fundamental, a menção mais próxima do tema está na tabela direcionada à disciplina de Ciências no 8º ano. O termo sexualidade é abordado como objeto de conhecimento sobre vida e evolução, e como uma das habilidades da disciplina, indicando que deve tratar de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e métodos contraceptivos. Nas orientações para professores do ensino médio, o termo é mencionado apenas uma vez e ainda com menos detalhe, como uma competência geral, que pode ser desenvolvida em núcleo de estudo. Mãe de Valentina e Danton, de 12 e 15 anos, Tâmara Ramalho diz que os filhos só aprenderam as funções do aparelho reprodutivo sob o olhar da Biologia. “Não chamo isso de educação sexual”, critica a mãe dos adolescentes, que leciona Sociologia na rede pública.
Especialistas e professores afirmam que ensinar educação sexual nas escolas se tornou mais difícil nos últimos anos. “Até 2018, a gente tinha mais liberdade para fundamentar a educação sexual nas escolas”, conta a professora Camila Burchard, vice-diretora e orientadora educacional na rede pública do Rio Grande do Sul. Hoje, essa liberdade se restringe aos cuidados com o corpo e higiene, mas apenas em algumas séries.
“Os professores que discutem o assunto em sala precisam ter coragem, já que o movimento Escola Sem Partido criou uma cultura de ameaças contra professores e escolas”, diz Marcele Frossard, assessora de Políticas Sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Ela lembra que a discussão sobre gênero e sexualidade chegou a ter mais destaque durante a formulação da BNCC, mas perdeu força diante do avanço do conservadorismo e da falta de disposição dos grupos empresariais para debater o tema à época. O interesse, afirma, era apenas aprovar o documento.
Na opinião da coordenadora do Programa de Pós-graduação em Educação Sexual do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Andreza Leão, os Planos Curriculares Nacionais (PCNs), antecessores da BNCC, eram mais amplos. Além de saúde sexual e reprodutiva, tratavam de relacionamentos afetivos, por exemplo, e contribuíam mais para a formação integral dos estudantes, de acordo com Andreza.
Com a discussão de gênero e orientação sexual fora das escolas, os estudantes perdem a chance de entender melhor seu lugar no mundo e sanar suas dúvidas com os professores, ressalta Marcele, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. “É uma coisa tão exposta, você vê corpos o tempo inteiro, e não fala sobre isso? É uma coisa que não tem muito sentido”, diz a cientista social, lembrando o caso recente do adolescente Lucas Santos. Para ela, em um momento de mudanças na identidade e na personalidade como a adolescência, dar respostas a essas questões pode evitar casos de homofobia, bullying e até suicídio entre os jovens.
Líder de Relações Governamentais do movimento Todos pela Educação, Lucas Hoogerbrugge afirma que episódios como a interferência do Ministério da Educação (MEC) em editais de compra de livros didáticos para suprimir referências de enfrentamento ao machismo, homofobia e qualquer tipo de preconceito por termos generalistas contribuem para dificultar o ensino da educação sexual. “É um desserviço, porque acaba invisibilizando os desafios que os grupos que eram mencionados enfrentam”, critica.
As principais entidades representativas não têm dados sobre o ensino de educação sexual e evitam se posicionar acerca do assunto. O Estadão buscou a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), mas a entidade não se pronunciou. O Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), por sua vez, afirmou não ter informações sobre o tema nem saber como os Estados trabalham esse assunto nas redes de ensino.
Alguns Estados abordam questões de gênero e sexualidade como princípios norteadores do currículo da rede de ensino. Nas escolas estaduais da Paraíba, há práticas pedagógicas em datas específicas, como o Dia de Combate à LGBTQIA+fobia, e parcerias com Secretarias de Saúde e de Assistência Social, além de ONGs. Na rede estadual baiana, um dos temas do Documento Curricular Referencial da Bahia, que está em consulta pública, é justamente “Educação para as relações de gênero e sexualidade”.
Em Pernambuco, o documento que orienta os ensinos infantil, fundamental e médio tem como base as diretrizes curriculares nacionais, mas prevê que “o respeito às diversidades culturais, religiosas, étnicas, raciais, sexuais e de gênero não seja apenas um princípio, mas também uma estratégia formativa para o desenvolvimento dos alunos”. Já a rede estadual de São Paulo pode incluir disciplinas eletivas que variam de escola para escola, de acordo com a necessidade dos estudantes. A BNCC não é o todo, diz o chefe de gabinete do governo paulista, Henrique Pimentel, e deve ser complementada de forma colaborativa.
É o caso da disciplina eletiva sobre educação sexual estruturada pela professora Verena Santos, que leciona Biologia para turmas de ensino médio da rede pública paulista. “Os alunos se interessam muito”, comemora a educadora. Além do material didático e do suporte tecnológico, Verena utiliza jogos e deixa à disposição dos adolescentes uma caixa de dúvidas, onde eles colocam suas perguntas. Os questionamentos são respondidos pela professora ao fim de cada aula.
Falta de formação e material didático adequado
Conseguir corresponder às necessidades dos alunos, no entanto, depende de conhecimento. E é nesse ponto que a formação de muitos deixa a desejar, afirma Camila Sabino, que leciona Biologia no Recanto das Emas, região administrativa do Distrito Federal. “Muitas vezes o próprio professor não tem sua sexualidade bem resolvida”, diz a educadora. “Pelo que eles têm na mão, já fazem muito.”
Além da falta de formação, professores relatam problemas com o material didático e os tabus em torno do tema. Para Marcel Madeira, que dá aulas de educação sexual na rede pública e privada de Santa Catarina, o material didático não contempla todas as questões que o assunto desperta. Segundo ele, os professores contornam isso abrindo espaço para dúvidas dos alunos, mas nem sempre conseguem respondê-las “devido aos diversos tabus que existem em relação a esse conteúdo”.
Na opinião do professor Ítalo Ferreira Garcia, que leciona Ciências no Centro Educacional Margarida Brito, em Salvador, o fato de o material didático se limitar às questões biológicas é um entrave às aulas de educação sexual. “Não traz debates sobre homoafetividade, sobre como a pessoa se identifica socialmente, a questão dos nomes sociais, essas temáticas que envolvem sobre questão de gênero”, exemplifica.
Sem previsão de mudanças
Atualmente, o temor de um retrocesso é uma das razões do desinteresse geral da academia, de movimentos sociais e de ativistas em pautar uma revisão da BNCC. As instituições responsáveis por esse debate, como o MEC, o Consed, que reúne secretários estaduais de Educação, e a Undime, dos dirigentes municipais, não colocam foco no assunto.
Presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE), Maria Helena Guimarães de Castro afirma que não existe superficialidade no modo em que a educação sexual é tratada na BNCC. Ela explica que a intenção do documento é apenas planejar uma abordagem geral. “Não concordo (com as críticas), porque aí teria de ter educação sexual, financeira, meio ambiente. Não é isso”, diz Maria Helena. O Estadão entrou em contato com o Ministério da Educação para um posicionamento sobre iniciativas relacionadas à educação sexual e deficiências apontadas na BNCC, mas não obteve retorno.
Tampouco o tema da educação sexual é prioridade no Legislativo nacional. Os presidentes das comissões de Educação do Congresso defenderam o debate, mas ressaltaram que a discussão não tem sido pauta dos parlamentares. “Com alguns colegas, não posso tratar de gênero nem utilizar uma palavra mais complicada”, afirma a deputada Professora Dorinha (DEM-TO), que preside a Comissão de Educação na Câmara Federal. Segundo ela, o colegiado tem de ser provocado para discutir educação sexual.
No Senado, o presidente da Comissão de Educação diz que há abertura para o debate do tema e prega mais diálogo. “Quanto mais informação tiver, menor será o prejuízo”, afirma o senador Marcelo Castro (MDB-PI), que é médico psiquiatra. Favorável à inclusão da sexualidade no currículo para uma formação completa, o parlamentar diz que a questão tem de ser tratada da forma mais natural possível. “Sem banalizar ou chocar, mas para fornecer a educação completa, que implica na sexualidade.”
Como acompanhar o assunto na escola?
Projeto pedagógico
É importante ler o projeto político-pedagógico (PPP) da escola para conhecer a identidade da instituição, bem como os objetivos e os métodos em relação à educação sexual.
Reunião de pais
Aproveite esses encontros para conversar com os professores e a coordenação pedagógica da escola sobre o ensino de educação sexual. Pergunte, por exemplo, quais atividades estão planejadas para a série do seu filho ou da sua filha. Também é válido conversar com outros pais para explicar a importância do assunto.
No conselho
Fazer parte desse grupo é um caminho para se envolver com o tema e pautar discussões sobre educação sexual.
Envolva-se
Se a escola oferecer atividades como palestras, oficinas e mostras sobre educação sexual, procure participar e estimule que sua filha ou seu filho faça o mesmo.
Incluir tema em sala de aula ainda é desafio mundial
Para a Organização das Nações Unidas (ONU), a educação sexual está relacionada à promoção dos direitos humanos e deve fazer parte de um currículo sólido nas escolas. Atualmente, porém, dos 75 países que disponibilizam dados relacionados a leis e regulamentos de apoio à saúde sexual e reprodutiva, menos de dois terços têm políticas para consolidar a educação integral em sexualidade nos currículos escolares nacionais.
Representante auxiliar do Fundo de População das Nações Unidas no Brasil, Júnia Quiroga diz que a plena incorporação nos currículos ainda é desafiadora. Ela atribui o fato à resistência de setores mais conservadores e à desinformação sobre a importância do tema. “A educação integral para a sexualidade tem um papel muito importante na prevenção dos diversos tipos de violência. Ensina respeito, consentimento e equidade de gênero”, defende Júnia.
Recentemente, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) produziu um material para auxiliar grupos e instituições que executam projetos educacionais com foco em sexualidade. Em pesquisa recente feita em sete países da América Latina sobre a hostilidade que alunos LGBTQIA+ enfrentam nas escolas, a agência apurou o impacto disso na evasão escolar de estudantes que pertencem a este grupo. O levantamento, realizado na Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Peru e Uruguai, concluiu que aqueles que sofrem vitimização com base na orientação sexual têm pelo menos duas vezes mais chances de faltar à escola.
No Brasil, 58,9% dos estudantes afirmaram já ter faltado às aulas por conta de agressões motivadas pela orientação sexual, segundo a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêneros (ABGLT). Além disso, 51,9% faltaram à escola por não se sentirem confortáveis com a própria expressão de gênero no ambiente escolar, e uma parcela importante evita frequentar locais como quadras poliesportivas (36,1%), banheiros (38,4%) e refeitórios (14,5%). “Essas atitudes e comportamentos são formados na primeira infância, tanto no ambiente doméstico quanto no educacional”, afirma Mary Guinn Delaney, assessora regional de Educação para a Saúde da Unesco na América Latina e no Caribe.
Fonte: Estadão Educação
Não é justo que os adolescentes venham compreender sobre educação sexual saudável e preventiva, só no 8° ano, uma vez que os adolescentes já começam sua experiência sexual na maioria das vezes aos 10 , 11 anos de idade. Digo, não significa orientá-los a iniciar suas vidas sexuais nessa idade, mas sim previní-los e orientá-los para o tempo certo e do jeito certo. Lembrando, que, a maioria deles que se encontram em vulnerabilidade, iniciam suas vidas sexuais ainda antes dos 10 anos.