Negros com altas habilidades relatam diagnóstico tardio por causa de racismo
Morena Mariah, 30, cresceu achando que não era inteligente. Colegas de turma se recusavam a fazer trabalhos com ela por considerá-la burra, e uma docente já chegou a acusá-la de plágio. “Teve professora que pediu para chamar a minha mãe porque achou que ela tinha escrito o texto. Então, fiquei depois da aula para ela me ver escrever. Quando entreguei o texto, ela ficou sem graça.”
Em 2021, porém, Morena descobriu ter altas habilidades, diagnóstico que desafiou o que ela cresceu ouvindo nas escolas particulares onde estudou. “Fiquei muito surpresa porque nunca cogitei essa possibilidade. Eu achava que era burra”, afirma ela.
A Política Nacional de Educação Especial define a pessoa com altas habilidades como aquela com desempenho elevado em um ou mais aspecto avaliado, seja ele acadêmico, artístico, psicomotor ou de liderança.
Esse é o texto da Folha de São Paulo, veiculado quinta(24). Morena recebeu o diagnóstico da neuropsicóloga ao fazer testes cognitivos para investigar se estava no espectro autista. O próximo passo agora é receber o laudo da psiquiatra.
Para ela, o fato de ter sofrido racismo nas escolas atrasou o diagnóstico. “Se você é branco, as suas habilidades são reconhecidas com mais facilidade. Mas, se você é uma pessoa preta, até o que é uma habilidade sua pode virar um defeito”, diz ela.
Avaliação semelhante faz o universitário Matheus Luiz Franco, 20, que descobriu ter altas habilidades quando tinha 15 anos. À época, ele diz que uma representante do Instituto Municipal Helena Antipoff —centro de referência em educação especial do Rio— visitou sua escola e percebeu que ele tinha características de alguém com altas habilidades, como capacidade de liderança.
“Ninguém questionava qual o motivo de eu tirar nota alta mesmo sem fazer os deveres ou ler os livros. Todo mundo só olhava para o fato de eu ser bagunceiro. Eu era o aluno negro da sala que era bagunceiro. Os professores só olhavam para isso, mas não para outras características minhas”, diz ele.
O estudante diz que, em vez de ser um alívio, o diagnóstico acabou virando um fardo em sala de aula. “Os professores me olhavam com olhar muito acusador. Quando eu recebi o diagnóstico, isso só piorou. Eles falavam que só queriam nota dez”, afirma Matheus. “Enquanto aluno negro, presidente do grêmio e alguém com altas habilidades, eu era cobrado muito mais. Hoje eu consigo perceber o quanto isso me afetou.”
Segundo o censo escolar de 2020, o Brasil tem 24.424 estudantes com altas habilidades/superdotação na educação especial, mas não há dados sobre o perfil étnico-racial desse grupo. Nos Estados Unidos, porém, pesquisas já mostram as disparidades raciais no diagnóstico de altas habilidades.
Em um artigo publicado no ano passado, a pesquisadora americana Marcia Gentry mostrou que negros são sub-representados entre os estudantes que recebem diagnóstico de superdotação nos EUA.
Segundo ela, que é professora da Universidade Purdue e especialista no assunto, esse grupo representa 15% da população total de estudantes matriculados em escolas públicas, mas apenas 8,5% deles são identificados como superdotados.
Já os estudantes brancos representam 48% do corpo estudantil, porém constituem quase 59% dos alunos que recebem o diagnóstico.
“As unidades escolares não reconhecem a inteligência e a capacidade de pessoas negras. Eu trabalho com empresas e escolas que se perguntam como desenvolver talentos negros e eu sempre digo que é vencendo o racismo”, diz Benilda Brito, pedagoga e uma das autoras do livro “‘Negras (In)confidências: Bullying, Não. Isto é Racismo” (editora Mazza, 2021).
“Nós somos um povo com talentos, mas sem a oportunidade de dar visibilidade, como a gente vai mostrar isso?”, questiona ela, destacando que os docentes devem se posicionar contra a discriminação racial em sala de aula. “Não existe silêncio neutro diante do racismo. Se a gente não tem um currículo e uma prática antirracista, a gente é a favor dele.”
O próprio teste de inteligência já foi alvo de questionamentos. Diretor do programa de pós-graduação em psicologia escolar da Universidade Rider, Stefan Dombrowski diz que esse tipo de teste surgiu no começo do século 20 na França para identificar quais estudantes precisariam de ajuda na escola em razão de dificuldades de aprendizado.
No entanto, segundo ele, a avaliação não demorou a ser usada para reforçar teses racistas. Essas crenças pregavam que inteligência estaria ligada à raça e que pessoas do norte da Europa seriam intelectualmente superiores. “O teste foi desenvolvido como um instrumento. Como muitos instrumentos, ele pode ser usado para bons propósitos ou para propósitos ruins.”
Dombrowski diz que mulheres que apresentassem QI abaixo da média eram esterilizadas à força no estado americano da Virgínia. Na Califórnia, com base nessas avaliações, alunos negros eram colocados em turmas voltadas a pessoas com deficiência intelectual, quando na verdade eles não tinham essa condição.
Ele afirma que, hoje, entidades que trabalham com testes de inteligência desenvolveram estratégias para eliminar práticas racistas. O especialista salienta, porém, que essas avaliações não podem ser vistas como a única forma de avaliar se uma pessoa terá uma vida bem-sucedida.
Por fim, a Folha de São Paulo conclui: “É só um número no final das contas. Existem outros fatores que contribuem para o sucesso que vão além de um teste de QI, como o modo como você se relaciona com os outros, gentileza e responsabilidade”, diz ele.