Daniel Cara/Arquivo Pessoal

Um dos mais conceituados protagonistas frente à luta por melhores condições para a educação no Brasil, Daniel Cara analisa as atuais condições da escola pública e de seus profissionais em meio à pandemia da Covid-19 e do distanciamento social e aponta o tamanho do despreparo dos gestores em encarar os desafios da educação.

Nesta entrevista, o educador destaca, também, as toscas falhas que impedem com que a escola pública possa atuar com qualidade e gestão democrática.
 

Daniel Cara é professor de Fundamentos Econômicos da Educação e Políticas Públicas Educacionais da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Também é membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

 “Gestores públicos irresponsáveis e mantenedores de instituições de educação superior
querem transformar a EAD em uma alternativa de redução de custos permanente”

Portal CPP: Professores da rede pública denunciam as dificuldades de alunos sem condições adequadas de acompanhar as aulas pela internet em casa. Também apontam falta de preparo para lidar com a plataforma e todas as mudanças na forma de ensinar. Como o ensino à distância afetará os estudantes? Qual o futuro do EaD especialmente no ensino superior?

Daniel Cara: Duas perguntas essenciais. Para a educação básica a EAD não serve. Ela não funciona em termos pedagógicos. É claro que nesse momento de distanciamento social ela é a única alternativa, mas diante de seus limites, os dias e as horas letivas não podem ser contabilizados. Isso ocorre por três motivos: primeiro, como introduzi anteriormente, a EAD não permite o processo de ensino-aprendizado. Segundo porque há gritante desigualdade no acesso à Internet banda larga e às unidades computacionais – desktops, notebooks, tablets e smartphones – adequadas para as atividades de ensino remoto. Terceiro, e mais importante, os professores não foram envolvidos na construção das plataformas e soluções de aulas remotas. Como, em geral, os gestores educacionais nunca estudaram pedagogia ou trabalharam em escolas públicas, suas decisões são contraproducentes. Mais do que nunca, esse era o momento de valorizar os professores, dar voz e poder a eles, em reconhecimento ao saber pedagógico. Não foi o que ocorreu. Na educação superior a EAD tampouco funciona, mas o drama é menor. O problema que vislumbro é de intenção: gestores públicos irresponsáveis e mantenedores de instituições educação superior querem transformar a EAD em uma alternativa de redução de custos permanente, precarizando ainda mais nossa educação. Essa será uma permanente, precarizando ainda mais nossa educação. Essa será uma batalha essencial daqui em diante.

“Lembro daquele provérbio árabe, baseado nas observações de guerra de Alexandre Magno:
sequer somos leões governados por ovelhas. A maioria dos parlamentares são hienas.”

De olho no Enem, em meio à pandemia, muitos estudantes vivem o choque entre as condições de estudos das diferentes classes sociais. Um desafio a mais aos alunos de escolas públicas. Mesmo com a disponibilidade de alternativas de estudos, em São Paulo, estado mais rico do Brasil, praticamente a metade não consegue acessar o aplicativo de aulas a distância. Em meio ao contexto das desigualdades na educação, como está o Fundeb?

Antes, preciso dizer que o adiamento do Enem foi insuficiente, será preciso mais que 30 ou 60 dias. É preciso adiar o Enem e todos os exames vestibulares e de seleção de alunos até termos segurança em termos de saúde pública, com a devida conclusão do ano letivo ou estarmos próximos dela. 
Sobre o Fundeb, ele está parado. Está parado porque temos na Presidência da Câmara dos Deputados um parlamentar frágil, o deputado Rodrigo Maia. Ao final do ano ele conclui seu mandato de presidente. Com isso, a cada dia ele perde poder. Quando ele estava empoderado, decidiu não pautar a matéria porque ela desagradava o mercado financeiro, que é o polo de poder que ele representa. Toda vez que observo a qualidade dos parlamentares que temos, me lembro daquele provérbio árabe, baseado nas observações de guerra de Alexandre Magno: sequer somos leões governados por ovelhas. A maioria dos parlamentares são hienas.
Contudo, estamos realizando nosso trabalho e creio que vamos melhorar ainda problemático relatório pautado por Rodrigo Maia e apresentado pela deputada professora Dorinha. Como ele perde poder a cada dia, ele decidiu que quer ter uma saída honrosa da presidência da Câmara dos Deputados.
 

“Educação para dar certo, ela deve ser gerida de forma
democrática e deve ser pautada pelos educadores e educadoras.”

Com as aulas presenciais suspensas, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo criou o CMSP (Centro de Mídias SP), plataforma que permite conectar alunos, do ensino fundamental e médio, aos professores e gestores por meio de aulas gravadas e ao vivo. Qual o impacto dessa iniciativa na educação pública?

Em termos de aprendizado, é nula. Mesmo acessando o sistema os alunos aproveitam pouco. Faltou humildade à secretaria para ouvir professoras e professores, reconhecer o saber deles. Em um debate uma parceira da Secretaria de SP me questionou: “mas como vamos ouvir centenas de milhares de professores?”. Eu respondi: “gravíssimo é não ouvi-los e querer lecionar para seus milhões de alunos”. Educação é a atividade mais séria e complexa da sociedade. E para dar certo, ela deve ser gerida de forma democrática e deve ser pautada pelos educadores e educadoras.
 

“O caminho é ter a saúde pública como referência, a ciência como norte
e, para a educação, a pedagogia como pilar, valorizando os especialistas: os professores.”

No Brasil, alunos, professores e gestores tentam se adaptar à nova realidade após a pandemia de Covid-19. A educação mudou. O processo de ensino e aprendizagem tem que ser revisado. E agora, como encontrar um planejamento pedagógico capaz de motivar os estudantes para a volta a uma escola com uma realidade completamente descaracterizada?

Não sabemos o quanto a escola e a educação mudaram. O mundo mudou e, como muitos estão em isolamento social, infelizmente nem todos tiveram essa oportunidade – ou privilégio? –, ainda é impossível cravar. Contudo, o caminho é ter a saúde pública como referência, a ciência como norte e, para a educação, a pedagogia como pilar, valorizando os especialistas: os professores. Quem falar além disso é vendedor de ilusões. E tudo o que o país e o mundo menos precisam é de mercadores do futuro.