Marcos Furtado em Belford Roxo/Neimar Santana

Marcos Furtado é um jornalista premiado que nasceu em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, e se especializou em escrever assuntos relacionados à sociologia, direitos humanos e educação.

Em 2016, ganhou o 11º Prêmio Santander Jovem Jornalista com uma reportagem para o jornal Estado de São Paulo a respeito do informativo virtual CDD (Cidade de Deus) Acontece. No ano seguinte, Marcos estudou na Universidad de Navarra, na Espanha. mais tarde, em 2019, integrou o time do Jornada Galápagos de Jornalismo. Sua experiência fez com que fizesse parte da cobertura do coronavírus em favelas para Folha de SP e Projeto Colabora.

Com muita experiência na bagagem, Marcos, que estudou como cotista e mora na Comunidade Pereira da Silva, em Santa Teresa, no Rio, mostra ao Portal CPP a face excludente, indiferente e claudicante que compõem o perfil da educação brasileira. Acompanhe.

“A meritocracia é uma das grandes mentiras contadas no Brasil”

Portal CPP: Os profissionais de educação sofrem com a pressão de reorganizar em um curto período o planejamento pedagógico. A cartilha que você criou para orientar os moradores de favelas no combate ao Coronavírus aponta a gravidade desta luta diante das múltiplas limitações impostas aos moradores. Entre as dificuldades está a educação e seus profissionais. Você pode mensurar os maiores desafios?

Marcos Furtado: O Projeto Colabora é uma iniciativa de jornalistas direcionada em questões de sustentabilidade, com a educação sendo um dos focos (Veja a cartilha).

Os maiores desafios da educação em favelas e regiões periféricas em tempos de pandemia é a ausência de conexões de internet de qualidade (isso quando tem), equipamentos, como notebook e computador, e a falta de estrutura que muitos pais têm para ajudarem os filhos no processo educacional.

No outro ponto, os profissionais de educação sofrem com a pressão de reorganizar em um curto período o planejamento pedagógico, vencer limitações de internet e falta de equipamentos. Fiz uma reportagem para a Folha de São Paulo sobre a pressão feita pela Seeduc para professores da rede estadual do Rio produzirem durante esse período

O poder público precisa entender, de uma vez por todas, que uma população bem educada gera valor e retorno para o país.

Estudos apontam que no Brasil 6,5 milhões de alunos da rede pública não têm como se preparar efetivamente com a ajuda da tecnologia e que os candidatos ao Enem mais prejudicados pela suspensão das aulas presenciais são os que detêm maior vulnerabilidade econômica. Especialistas explicam que, por questões sanitárias e econômicas, e mesmo sociais, o adiamento do Enem em até dois meses é irrisório diante da situação. No seu ponto de vista, o que poderia ser mais lógico a fazer? Você acredita que a criação do 4º ano do Ensino Médio é viável?

Essa é uma pergunta bem complexa, pois o Enem alcança todo o território nacional e suas diversas singularidades. Em primeiro lugar, acredito que o espaço da escola poderia ser mais aproveitado neste momento como ponto para ações em comunidades. Além da ausência das aulas, boa parte dos alunos desses locais sente falta da merenda, especialmente em um momento em que a vulnerabilidade social está ampliada com demissões e muitos negócios quebrando.

O 4º ano do ensino médio pode ser uma prática oportuna, mas sozinha terá pouca eficácia. Este momento demonstra mais do que nunca as diferenças que existem entre as redes pública e privada de educação. É preciso pensar numa gestão de recursos mais eficaz e que quebre o paradigma das escolas públicas terem um ensino de baixa qualidade. O método de avaliação do Enem precisa ser repensado. A prova não contempla o que, de fato, os alunos de regiões periféricas aprendem. Cobram inglês, mas não vejo o ensino de inglês na rede pública. O gargalo da educação brasileira é vergonhoso e criminoso.

Além disso, precisamos valorizar os profissionais de educação com melhor remuneração e criar uma infraestrutura de segurança ao redor dessas escolas. Há muitas crianças e jovens morrendo por meio do confronto entre polícia e tráfico nas comunidades. Penso que pode ser planejadas ações mais específicas para reduzir a evasão escolar, especialmente neste momento em que muitos jovens sem contato algum com a escola. O poder público precisa entender de uma vez por todas que uma população bem educada gera valor e retorno para o país.

“Cotas não reduzem a qualidade de ensino. O que reduz a educação são processos educacionais excludentes e que reduzem o pensamento crítico dos estudantes.”

É creditado à Unesco a afirmação: “as escolas devem ser melhores que os ambientes em que os estudantes vivem.” Muitas crianças e adolescentes, que moram em favelas em moradias precárias, com poucos cômodos e muitas pessoas. Quanto mais o tempo passa, mais gerações são poupadas de condições apropriadas para estudarem. O fantasma do êxodo escolar ronda cada vez com mais veemência. Como ampliar as condições essenciais de estudo para essa parte da população que há incontáveis gerações luta sem ter acesso a uma educação igualitária?

Falo por mim. Eu sou de Belford Roxo, cidade de uma das regiões com os piores índices de aprendizagem, a Baixada Fluminense. Sempre fui uma criança inquieta e que queria fazer cursinhos, mas não encontrava oportunidades e pessoas para me orientar. Depois de muita luta estou terminando a graduação de jornalismo e há quem diga: ‘olha para ele. Quem se esforça consegue’. Essa é uma grande balela, pois se não fosse a ajuda dos meus professores da graduação e um bocado de sorte eu teria desistido do ensino superior ou seria mais um formado frustrado. A meritocracia é uma das grandes mentiras contadas no Brasil.

O Brasil só vai conseguir ampliar as condições de estudos para moradores de favela quando focar em processos equitativos. As cotas estão aí como bons exemplos do que pode ser feito a curto prazo num contexto desigual. Eu sou cotista. Já ouvi de algumas pessoas que as cotas são vitimismo ou reduzem a qualidade do ensino. Se não fossem as cotas, eu não teria entrado na universidade. E não por incapacidade, mas por desacreditar que poderia concorrer com estudantes dos melhores colégios particulares do Rio.

A conta na minha cabeça não fechava. Foi por meio das contas que entrei com bolsa na faculdade e desenvolvi habilidades que nunca imaginei ser capaz de ter. Depois de algum tempo, dei um “up grade” na minha bolsa quando ganhei um concurso nacional de jornalismo e fui estudar em uma universidade da Espanha. Acho que a minha história é o maior exemplo de que cotas não reduzem a qualidade de ensino. O que reduz a educação são processos educacionais excludentes e que reduzem o pensamento crítico dos estudantes. 

“Enquanto o Brasil não assumir o seu racismo veremos sua reprodução nas novas gerações.”


Quem age com maior tirania nas escolas brasileiras: o preconceito social ou o racial?

Com certeza o racial. O preconceito social é amplificado quando a questão é raça. Jovens negros morrem muito mais. Quando o assunto é racismo geralmente as escolas não tomam posturas mais efetivas. O ensino da história brasileira ainda é pautado na visão europeia. Heróis negros são invisibilizados. Garanto que muitos estudantes terão dificuldade de dizer quem foi João Cândido, o homem negro que revolucionou a história da marinha brasileira por meio da Revolta da Chibata. Uma revolta que é um exemplo vivo de como o racismo no Brasil não terminou com a escravidão. No mês passado, uma estudante preta foi alvo de comentários racistas por outros alunos de uma escola particular e as pessoas queriam discutir até onde a escola pode agir em caso de ofensas virtuais. Ainda existe essa dúvida? Enquanto o Brasil não assumir o seu racismo veremos sua reprodução nas novas gerações.
 

“Triste ser coadjuvante na história de um país que percentualmente tem menos negro do que o Brasil.”

Fato é que o grito de fúria nos Estados Unidos com a morte de George Floyd explodiu no mundo inteiro. A onda de protestos antirracistas acordou uma sociedade branca – de maioria jovem – que cresceu acostumada a fechar os olhos para a violência contra os negros. A frase Black Lives Matter (Vidas negras importam) se espalhou até chegar no Brasil. Por aqui a violência, principalmente a policial, banalizou o genocídio de jovens negros sem esbarrar em de punição. Onde fica a empatia por parte dos gestores e da sociedade que por ora se autodenomina antirracista? Como a educação brasileira deve se impor em sala de aula para cobrar a adesão permanente ao debate racial e extirpar até a raiz a violência e o racismo?

O que assusta nesse recente movimento brasileiro é perceber que o mundo precisou gritar para a gente ter voz. Apesar da abertura de espaço do atual movimento, é triste ser coadjuvante na história de um país que percentualmente tem menos negro do que o Brasil.

Acredito que falta empatia de gestores e da sociedade pelo simples fato de que ter privilégios é muito bom. Você só pode ter uma classe premium se existir a econômica e os empregados. A luta antirracista busca a redução das desigualdades e, consequentemente, a de privilégios.

A educação brasileira deve investir em iniciativas de equidade, como as cotas, e inserir na agenda educacional temas e disciplinas relacionados ao povo negro e indígena. Outro ponto é investimento na produção de pensamento crítico e oportunidades para que mais alunos pretos conheçam suas capacidades por meio de intercâmbios e capacitações. Tem muita gente talentosa nas favelas que o Brasil está desperdiçando.

Fotos: Comunidade Pereira da Silva, em Santa Teresa, onde Marcos mora atualmente. O jovem à espera do ônibus é seu amigo Neimar Santana, autor das fotos.