Em janeiro do ano passado, a auxiliar de escola Mirian Moura matriculou o filho Magdiel, 16 anos, que só havia estudado em instituições particulares, em uma escola estadual. A principal motivação da família, de Salvador, era cortar gastos, já que o marido de Mirian ficara desempregado. Dificuldade financeira também foi o que pesou para Tania Grille Ribeiro. Seu filho, João Victor, 11 anos, foi transferido para uma escola municipal do Rio de Janeiro depois que a renda familiar encolheu ao longo de 2015: operadora de telemarketing, ela está afastada há mais de um ano por problemas de saúde, e seu ex-marido é funcionário comissionado de uma empresa afiliada à Petrobrás. Também no Rio, em 2014 a servidora pública Julia Sant’Anna elegeu uma unidade municipal para Dora, 6 anos, que antes frequentava uma creche particular. A própria Julia fez toda sua formação, da educação básica ao doutorado, na rede pública e, por acompanhar indicadores educacionais e políticas públicas, desejava repetir a experiência com a filha.

Essas três mães engrossam o movimento de famílias que vêm apostando na educação pública. Só a rede estadual de São Paulo registrou um aumento de 30% no número de estudantes egressos de colégios particulares nos últimos cinco anos, segundo a Secretaria de Educação. No mesmo período, no estado do Rio de Janeiro, duplicou o grupo de matriculados vindos de estabelecimentos privados. Alguns dados atribuem a migração à crise econômica do país – aumento do desemprego, alta da inflação e queda no poder de compra. Um levantamento da Serasa Experian reforça essa tese: a inadimplência na rede particular de ensino fundamental e médio teve um aumento de 25,9% no primeiro trimestre de 2015. A Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep) confirmou que, neste início de 2016, houve uma redução de 9% nas matrículas dos estabelecimentos privados. “Acreditamos que a migração entre 2015 e 2016 atingiu, sobretudo, as classes C e D, que haviam ganhado poder aquisitivo nos últimos anos, mas que agora estão sendo mais duramente atingidas pela economia em baixa”, analisa Amábile Pacios, presidente da Fenep.

Publicidade

Os dados ajudam a dimensionar a questão, mas ainda não esclarecem por completo o fenômeno da migração das matrículas. “É preciso uma análise mais detalhada”, sugere Karina Carrasqueira, socióloga e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Isso porque a mudança é muito recente. Coautora de um estudo que analisou indicadores do município do Rio de Janeiro entre 2010 e 2014, Karina constatou que, naquele período, o cenário era o oposto: aumento nas matrículas em instituições privadas – possível efeito da elevação do poder aquisitivo da população na época. “A mentalidade dominante no Brasil diz que escola pública é ‘coisa de pobre’. Quando começa a ganhar mais, uma das primeiras atitudes dos pais é colocar o filho em instituição particular, mesmo sem questionar sua qualidade”, diz.
Faltam vagas, sobra preconceito

Quem encarou a mudança inversa, dominante agora, se acostumou aos olhares de espanto. “Lembro de ouvir muito: ‘Você pensou bem?’ ‘E as greves?’ ”, conta Tania, que optou por ir atrás de escolas conhecidas e calcula economizar pelo menos 700 reais por mês. Em geral, a ignorância em relação ao (às vezes bom, sim) nível do ensino público se deve, em grande parte, à falta de índices comparativos entre as duas redes. “E isso acontece porque há poucas informações sobre a qualidade do ensino dos estabelecimentos privados”, aponta Anna Helena Altenfelder, superintendente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). Na educação básica, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) é o único indicador para comparações entre os dois sistemas. Mas há outros dois índices de avaliação das escolas públicas (não disponíveis para as particulares): a Prova Brasil e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que faz um ranqueamento das instituições. O Ideb, aliás, é uma ótima referência para quem está cogitando a mudança. “Foi nele que achei boas escolas”, diz Julia. A nota pode ser encontrada no site do MEC ou em páginas como Educar para Crescer e qEdu. “Há ótimas e disputadas escolas públicas, mas a média delas está ‘abaixo da média’ na qualidade, o que justifica a fama ruim. Esta acaba somada à crença de que o serviço gratuito é necessariamente pior que o pago”, afirma Luiz Carlos de Menezes, consultor da Unesco (o braço educacional da Organização das Nações Unidas) e do Ministério da Educação (MEC). Da mesma forma que as escolas pagas, as públicas variam muito entre si.

Para dificultar, a disputa é grande por matrículas nas melhores instituições e na educação infantil como um todo. Levantamento com dados nacionais feito pelo Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul estimou que faltam mais de 3 milhões de vagas em creches e pré-escolas públicas para crianças até 5 anos. Por esse motivo, o outro filho de Julia, Ivan, 2 anos, estuda em creche particular. “Sei que a qualidade da educação pública nesse segmento é muito boa, mas não me sinto confortável em disputar com quem realmente precisa. Meu plano é colocá-lo na mesma escola de Dora ou outra pública aos 6 anos”, diz.

Menezes acredita que a existência de boas unidades públicas, aliada às políticas de acesso ao ensino superior (como cotas e uso da nota do Enem na seleção), pode contribuir para diminuir o preconceito e o mito de que a escola pública não prepara para as melhores universidades.

Em sua experiência até agora, Julia, que matriculou a filha em uma escola bem colocada no Ideb, contabiliza vários prós (mais que contras). “Os professores recebem formação continuada. Minha filha teve diferentes perfis de educadoras, todas muito boas”, diz. O ambiente mais diverso é outra vantagem. “Os alunos convivem com crianças de todos os tipos, algumas com mais e outras com menos poder aquisitivo, também com estrangeiros e vários tipos de família; enfim, muitas referências socioculturais.” Ali é raro o consumismo desenfreado – a pressão infantil por aniversário em bufê e brinquedos caros. “Quanto maior a heterogeneidade das turmas, maior a interação e a troca de conhecimento. Isso favorece as condições de ensino e a aprendizagem”, acredita Anna Helena, do Cenpec.

Outro ponto que costuma surpreender positivamente as famílias recém-chegadas é sua alta participação na discussão do ensino. “Há gente engajada, que participa da tomada de decisões e da resolução de problemas. A escola recebe os pais, que se integram e opinam sobre festas e outras questões”, conta Mirian. “Aprendo muito nas reuniões mensais, nos encontros de formação para pais e na avaliação anual. Nesses momentos, todos se sentem acolhidos, à vontade para falar e compartilhar situações”, diz Julia. Presidente executiva do movimento Todos pela Educação, Priscila Cruz comemora e incentiva essa interlocução de famílias diferentes proporcionada pela migração. “A classe média ajuda a qualificar o debate, mas é preciso estar aberta ao diálogo e disposta a aceitar novas referências de relação familiares-escola-comunidade. É fácil pensar que pessoas simples não são bem informadas, mas isso não passa de preconceito.” Ela recomenda que os pais assumam uma postura mais participativa ao ingressar no sistema público. Julia, por exemplo, integra o conselho da escola da filha, onde conseguiu, junto com outros pais, pequenos avanços – como organizar o calendário de festas para ser divulgado ainda no início do ano.

A migração pode trazer, ainda, uma mudança na percepção do ensino oferecido pelo governo. “A escola pública não é o lugar dos que não podem pagar ou um favor do Estado, é de todos os brasileiros, do público”, lembra Priscila. A confiança tende a aumentar ainda mais à medida que a qualidade do ensino subir. “A rede vai evoluir com a melhoria de cada unidade. Analisamos números gerais, mas não podemos perder de vista que eles são o somatório de cada escola e de cada turma”, acrescenta ela. Acompanhada, é claro, de esforços consistentes do governo, essa colaboração da sociedade é um bem-vindo instrumento para superar as deficiências ainda existentes no sistema público. Pessoas como Mirian, Julia e Tania estão na linha de frente dessa transformação.

Fonte: Revista Cláudia