Antes de cursar o magistério em Cornélio Procópio, no Paraná, trabalhei como doméstica, colhi algodão e ajudei minha mãe, que era parteira e lavava roupa em troca de material escolar para mim e meus doze irmãos. Em 1962, quando passei no vestibular para educação física na Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, um padre da minha cidade foi falar com ela. Perguntou se sabia como eram chamadas as mulheres que saíam de casa dizendo que iam estudar. Achavam que negras fossem prostitutas ou alcoólatras, o que eu nunca quis ser. Ela respondeu ao padre que, enquanto lavava as roupas dele, jamais havia sido questionada sobre precisarmos de algo. Então, naquele momento, ele não deveria se intrometer. A educação me salvou — sobrevivi graças aos estudos.
 

Na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), cerca de uma semana atrás, contei sobre as humilhações pelas quais minha família passou para que eu e meus irmãos pudéssemos estudar. Disse isso ao microfone oferecido ao público no fim da palestra do ator Lázaro Ramos e da jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques. Falei pelos meus antepassados. Desde então, tenho sido procurada por várias pessoas, tenho dado entrevistas, e estou assustada. Não sou vítima. Sofri demais para não ser vítima. Minha mãe foi alfabetizada, lia muito, e ensinou meu pai, que perdi bem cedo, a ler e a escrever. Sou a primeira da família a ter graduação.
 

Eu me mudei para a capital a fim de fazer faculdade porque tive o apoio da minha mãe e de três professoras que me marcaram muito, Deni Pedotti, Gilda Poli e Mércia Poli. Para me sustentar durante os primeiros meses, vendi uma coleção de livros que havia levado um ano para pagar. Dava aulas para me manter, mas as dificuldades financeiras só cessaram quando fui aceita na moradia da universidade. Eu era a única negra da classe, e não me lembro de ter visto outra nos demais cursos.

Anos depois, quando fazia fisioterapia na Universidade Tuiuti do Paraná, não quis emprestar meu caderno a uma colega e, no intervalo, ela e as amigas ameaçaram me bater. Uma das alunas disse que eu deveria agradecer por elas permitirem que eu me sentasse ao lado delas. Comportamentos assim são constantes. Ao lecionar, sempre procurei respeitar as peculiaridades de cada um dos meus alunos. Trabalhava com o folclore, mas jamais fiz um ensaio de quadrilha. Ninguém queria formar par com a criança negra. Sempre fui respeitada como educadora e, quando os alunos me procuravam, chateados com alguma discriminação, repetia a mensagem que minha mãe me dizia: “Quer ser respeitado? Então seja melhor que eles, tire notas maiores, porque, um dia, vão precisar de você”.
 

Nós, os negros, só tínhamos uma chance na vida: estudar. Por isso, acredito que as cotas no ensino superior não são um privilégio, mas um dever da sociedade. Durante muito tempo, esse acesso nos foi podado. Basta ler os livros de história para perceber que as cotas sempre existiram — para os brancos e bem-­nascidos. Afinal, a condição para aproveitar as boas oportunidades era não ter um pingo de sangue negro ou indígena nas veias. Então, não é nenhum favor. O Brasil nos deve isso. Não basta assegurar a entrada dos estudantes no ensino superior.

Alunos cotistas — que moram distante das faculdades, não têm dinheiro para fazer o lanche, comprar livros ou roupas melhores — sofrem preconceito. São vistos como aqueles que estão “tirando”, entre aspas, a vaga dos que se esforçaram para passar no vestibular e devem “ceder”, novamente entre aspas, o lugar a pessoas que teriam menos capacidade intelectual. Isso não é verdade. A verdadeira inclusão teria de acontecer em todos os anos do curso, até o fim, na luta por uma vaga no mercado de trabalho. Recém-­formados passam por seleções mascaradas, em que não é a competência que conta, mas a roupa, o porte, a chamada “boa aparência”. Essa situação só vai mudar quando houver uma nova consciência da sociedade e os profissionais forem contratados pelo que sabem, e não pelo que parecem ser.
 

Depoimento a Rita Loiola

Fonte: VEJA de 9 de agosto de 2017, edição nº 2542