Paulo Nathanael Pereira de Souza

 

A escola sempre será o que forem os seus professores. Daí que na formação dos mestres está o segredo do sucesso ou do insucesso dos alunos na aprendizagem. Se isso foi uma axioma, no passado, quando o professor corporificava os próprios fins da educação, com suas lições ministradas no dia a dia e uma consciência de sua missão educativa, que beirava o sacerdócio, hoje continua a sê-lo, embora em dimensões e processos diferenciados, tendo em vista as mudanças havidas nos sistemas de ensino, especialmente nos graus fundamental e médio, que são o fulcro da crise, que se abateu sobre o setor. Nesta nossa era, chamada do conhecimento, já não se pode admitir que prevaleça em sala de aula a figura do “magister dixit”, até porque a velocidade das mudanças e o acúmulo de novos saberes inviabilizaram o domínio do conhecimento global pelos professores. Mais do que agentes de difusão de conteudismo, que hoje alcança dimensões oceânicas, converteram-se os professores em grandes orientadores de seus alunos na busca dos saberes necessários a sua formação intelectual e a seu convívio social. Como indica o estudo feito por membros do Conselho Nacional de Educação em 2001, intitulado Proposta de Diretrizes para a Formação Inicial de Professores de Educação Básica em Cursos de Nível Superior”, a ação do professor hodierno centra-se, de preferência, nas seguintes tarefas: 

a) “Orientar e mediar o ensino para a aprendizagem dos alunos;

b) Responsabilizar-se pelo sucesso da aprendizagem dos alunos;

c) Assumir e saber lidar com a diversidade existente entre os alunos;

d) Incentivar atividades de enriquecimento cultural;

e) Desenvolver práticas investigativas;

f) Elaborar e executar projetos para desenvolver conteúdos curriculares;

g) Utilizar novos métodos, estratégias e materiais de apoio;

h) Desenvolver hábitos de colaboração e trabalho de equipe”

 

Isso tudo expressa a diferenciação ultimamente estabelecida entre ensino e aprendizagem, cara e coroa da mesma moeda, que é o aproveitamento escolar, devendo ambos as tarefas integradamente caracterizar o trabalho docente, sem que uma venha a sobrepor-se à outra no processo didático. Apenas convêm deixar claro que o foco do ensino deslocou-se do antigo eixo conteudista do currículo, para a variedade de ações acima arroladas, conforme a opinião dos autores da proposta discutida no Conselho Nacional de Educação.

 

Tendo em vista essas mudanças, há que urgentemente rever a organização dos cursos de licenciatura no ensino superior brasileiro. Antes de entrar na conveniência e na premência de reformar as licenciaturas, há que deixar muito claro que, de uma vez por todas, dois mecanismos antigos da formação docente devem ser irremediavelmente sepultados, a saber:

 

a) A escola normal, que um dia formou excelentes professores primários, tendo alcançado, em São Paulo, padrões inigualáveis de qualidade pedagógica, parece ter morrido definitivamente. Por isso, há entre os educadores um certo saudosismo em relação ao seu funcionamento. Esse sebastianismo, no entanto, jamais conseguirá repor o papel dos cursos normais no cenário dos atuais e futuros sistemas de ensino. Primeiro, porque as exigências culturais desta era do saber não caberiam nas limitações de sua estrutura pedagógica e, depois, porque os grandes professores, que fizeram o seu inegável sucesso até os anos 1960-70, já morreram, sem deixar sucessores a altura de sua competência.

 

b) Os cursos de licenciatura de curta duração, um artifício criado pelo Conselho Federal de Educação nos anos 1970, para suprir, em um ou dois anos de duração, a falta de docentes nos grotões deste país, e que, contrariando as razões de sua criação, espalhou-se como as metástases de um câncer, quer pela ausência de professores titulados em número suficiente, até mesmo nas metrópoles, quer pela irrefreável cobiça dos mantenedores das faculdades privadas, que visavam mais ao lucro do que à oferta de bons serviços, ao multiplicá-los em sua instituições. Deles não se auferiu vantagem alguma para os sistemas de ensino e, pelo contrário, agravaram perigosamente a crise de ignorância pedagógica, que ajudou a solapar a qualidade do ensino superior brasileiro nestes últimos cinquenta anos. As muitas críticas que se fazem às licenciaturas que aí estão podem ser assim resumidas:

 

1) Currículos sobrecarregados de conteúdos teóricos quer nas matérias específicas do curso, quer nas pedagógicas, a ponto de não sobrar tempo para duas questões essenciais:

a) Ensinar a ensinar (falta de expertise em práticas didáticas em sala de aula) e,

b) Levar o professorando a participar de estágios mais longos e integrados em todas as práticas da escola onde venha a estagiar. São defeitos que levam o curso de formação a valorizar o teorismo excessivo e a não oportunizar a demonstração da aplicabilidade do saber, no exercício profissional do magistério. Os atuais cursos de licenciatura tem mais de erudição (acumulação do saber pelo saber) do que de cultura (funcionalidade do saber em benefício de quem o detém).

 

2) Didáticas que valorizam o discurso e ignoram os avanços da tecnologia da informação. Este é um dos mais graves problemas que obstruem o êxito da aprendizagem na atualidade. Se de um lado se fala muito nas exigências da era do conhecimento, em que vivemos, de outro, não foi possível, ainda hoje, incorporar aos processos de ensino e aprendizagem, os aportes dos meios de comunicação (rádio, TV, cinema, e coisas tais) e os da informática (computadores, internet e suas variadas linguagens e programações). Haja vista o fracasso das TVs Educativas, que foram a coqueluche dos anos 1970, no Brasil. Criadas para se integrarem com seus programas na ação dos professores em sala de aula, acabaram numa imensa frustração, eis que a pedagogia não conseguiu encontrar solução para o enigma da transformação da informação em mensagem capaz de educar. Qual a consequência? A TVs Educativas metamorfosearam-se em emissoras de Cultura e passaram a estar mais próximas de uma TV comercial, do que das escolas.

 

Pior do que isso está, hoje, a ocorrer com a computação. Adquirem-se lotes imensos de aparelhos, que são endereçados às escolas, onde passam a mofar em salas trancadas a cadeado, ditas laboratórios, que só se abrem quando lá chegam algumas visitas. Professores, via de regra, não sabem lidar com essas máquinas, e os alunos, que já as conhecem, por tê-las em casa ou porque com elas convivem nas “lan houses”, ficam infelizes por não as usarem no seu dia a dia . Principalmente os alunos do ensino médio que evadem em grande número, por sentirem-se entediados com os cursos jurássicos que lhes são oferecidos. Ora, se a maioria dos alunos que se matriculam no ensino básico, preferentemente os do ensino médio, pertencem à geração denominada y, isto é, os nascidos do fim do século XX para cá, e se  essa geração incorporou a linguagem digital ao seu dia a dia, como atraí-los para uma escola que afasta esse recursos de seus processos didáticos? São jovens, ademais, com perfis psicológicos inteiramente diversos de seus predecessores: uma porque tem preferência por imagens no lugar de textos, outra porque exercitam a multilateralidade de sua atenção, sendo capazes de ler um texto, ouvir música no Ipod, alternar a visão do livro com imagens de TV, participar do papo circunstante, tudo isso ao mesmo tempo. Se um professor não conseguir ter a sua disposição didáticas, que levem isso tudo em conta, não poderá se queixar de seus fracassos em relação aos alunos, que estão sob sua responsabilidade.

 

3) Outrossim, há também que atentar para o fato de que os cursos de licenciatura nunca tiveram muito prestígio no meio universitário, onde o bacharelado sempre adquiriu precedência. Aliás, ele próprio, o curso de formação de professores, começou como bacharelado, ao qual se adicionou um apêndice de disciplinas pedagógicas, que lhe deu o caráter de licenciatura. Daí que, em certas universidades, a pesquisa leva as glórias, em detrimento do ensino, o que resulta na formação de docentes pesquisadores e não ensinadores, os quais se aprofundam na verticalidade dos conteúdos, em prejuízo do pragmatismo dos processos didáticos. Muito mais haveria para discutir nesse campo da inadequação da formação superior dos docentes de ensino básico (da educação infantil, até o ensino médio). Quem tiver interesse maior pelo tema deve reportar-se ao documento acima referido, lavra de educadores com assento, em 2001, no Conselho Nacional de Educação. Para os propósitos deste artigo, basta o que aqui ficou dito, sendo certo que os “policy makers” do Ministério da Educação, bem como os conselheiros de educação e os membros dos conselhos universitários, deveriam voltar seu interesse para a urgente questão da formação docente e corrigir as distorções, que atualmente relativizam a importância desses diplomas.

 

Quanto mais se estuda esse problema da importância dos docentes na crise de qualidade, que se abateu sobre as escolas brasileiras, mais fica claro que eles, tanto quanto os alunos, são igualmente vítimas dessa conjuntura. Já se teceram neste texto comentários sobre a formação universitária dos docentes. Há que falar algo sobre esse outro fator que exerce profunda influência sobre os resultados negativos da educação nacional: a falta de uma carreira condigna para o magistério e o abandono a que foram relegados os professores, pelos governos deste país. São eles atualmente os mais mal pagos dentre todos os profissionais de formação universitária. No entanto, não há nenhuma profissão mais estratégica do que essa, pois, ao lidar com as novas gerações, asseguram elas as condições básicas do desenvolvimento da nação. O magistério já deveria, de há muito, integrar o rol das profissões de Estado e receber por isso as contrapartidas de carreira que lhe são devidas. Lamentavelmente não é o que acontece nem se notam sinais de que venha a acontecer. No ensino básico, o problema pertence aos Estados e Prefeituras, não se pode desejar uma carreira padrão a ser baixada por lei federal. À União, nesse assunto, estaria reservada a ação supletiva e complementar de que falam a Constituição de 1988 e o LDB de 1996. O que importa, no caso, é a decisão de cada Estado e cada Prefeitura de promover a implantação da carreira do magistério, e onde eventualmente já exista, de estimular a melhoria dos padrões de vencimentos e das promoções horizontais e verticais. O que não se pode aceitar é a continuação do que hoje acontece, com esses valores insignificantes e até mesmo humilhantes, que constam dos “holerites” ao final de cada mês. Como esperar dos mestres maior dedicação, mais qualidade e aprimoramentos continuados, se não houver uma contrapartida nos seus ganhos? Há queixas de que o magistério tornou-se profissão de quem não consegue posições melhores no mercado de trabalho. E muitas delas são ate´irrefutáveis. Ocorre que, no mercado, a qualificação das profissões depende diretamente dos valores salariais a elas agregados. Maus salários, piores profissionais, e isto é tão mais verdadeiro e axiológico em relação ao magistério. Não se trata de uma profissão qualquer, mas algo que se liga a razões estratégias e que diz respeito ao pessoal de nível universitário. A valorização dos professores começa pela melhoria dos padrões salariais e se fortalece pela racionalidade dos planos de carreira. Fora disso não haverá salvação possível!.

É doutor em Educação, ex-secretário de Educação em São Paulo e ex-presidente do Conselho Federal de Educação em Brasília.